Fonte: Café Point
De lavouras arcaicas a grãos premiados, Rondônia vira vitrine de sustentabilidade em cafés na Amazônia.
Por Cristiana Couto, de Rondônia
Quando a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30) abrir as discussões em Belém, em novembro, cientistas e cafeicultores de Rondônia estarão preparados para apresentar como o café do estado é um exemplo de cultivo sustentável e regenerativo em plena floresta amazônica.
Na AgriZone – espaço montado pela Embrapa Amazônia Oriental e parceiros para apresentar tecnologias desenvolvidas pela instituição para a agropecuária brasileira –, uma vitrine com 3 mil mudas de café, além de palestras, vídeos e degustação vão jogar luz sobre a revolução protagonizada pelos robustas amazônicos.
Definido como mudança profunda, acelerada e às vezes radical, o termo revolução, aqui, não é exagero. Em 15 anos, uma cultura extrativista e com preço definido pela contagem de defeitos tornou-se altamente produtiva, 100% rastreável e sensorialmente atrativa. “Para a COP30, levaremos resiliência climática por meio da genética e agregação de valor por meio da qualidade e da sustentabilidade”, resume o engenheiro agrônomo Enrique Alves, pesquisador da Embrapa Rondônia e pioneiro na transformação da qualidade dos robustas amazônicos.
Pesquisas e dados estatísticos da denominação de origem Matas de Rondônia – primeira DO de canéforas sustentáveis do mundo, com dez mil das 17 mil famílias cafeicultoras do estado e responsável por mais de 80% de sua produção – baseiam as afirmações.
Em maio, um dos estudos do projeto CarbCafé, criado em 2023 pela Embrapa em parceria com o Sicoob (Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil), a Caferon (atual Associação dos Cafeicultores da Amazônia Legal) e a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), demonstrou que os cafezais da denominação sequestram 2,3 vezes mais carbono do que emitem, removendo quase 4 toneladas de CO2 da atmosfera por ano.
A produtividade também impressiona: em 2011 eram 9 sacas por hectare; em 2025, a estimativa é de 54,8, a maior do país. Nas Matas de Rondônia, chega a 68,5 sacas, segundo o CarbCafé. O salto de mais de 500% ocorreu mesmo com a redução de mais de 80% da área cultivada desde 2001, quando atingiu 318 mil hectares.
Mas o estudo mais contundente – especialmente diante da exigência do EUDR – é o que comprova que não há relação entre a cafeicultura e a degradação recente da floresta em Rondônia. Publicado em 2024, ele mapeou 100% das fazendas das Matas de Rondônia com imagens de satélite (entre 2020 e 2023) e mostrou desmatamento zero em sete dos 15 municípios da DO. No total, o café ocupa apenas 0,8% do território (34,4 mil ha), contra 46% de pastagens e 52% de florestas preservadas, mais da metade em terras indígenas. “Quando as pessoas olham para lavouras em Minas e Espírito Santo, não pensam que já foram florestas. Na Amazônia, essa é sempre a primeira impressão”, observa o pesquisador.
“Não dá para produzir café na Amazônia sem comprovação científica, senão viramos alvo fácil de narrativas”, alerta Juan Travain, presidente da Caferon, que após exportar para a Coreia do Sul enfrentou questionamentos na internet sobre desmatamento.
A revolução do café em Rondônia combina ciência, tecnologia e sustentabilidade. Introduzida nos anos 1970 por migrantes do Espírito Santo, Paraná e Minas, em movimento incentivado pelo governo militar, a cultura ultrapassou 300 mil hectares, mas perdeu espaço para pastagens nos anos 2000 com a queda de preços e produtividade. A retomada ocorreu entre 2010 e 2020, com melhoramento genético, propagação clonal, irrigação e manejo preciso, e se fortaleceu recentemente com semimecanização da colheita e processamentos fermentativos.
Com produtividade e qualidade consolidadas, cresce o investimento dos cafeicultores em sustentabilidade. Uso racional da água, sistemas agroflorestais, bioinsumos, drones e recuperação de áreas degradadas já são práticas comuns em Cacoal, município referência em qualidade e conhecido como capital do café em Rondônia. “Quando, por meio da inovação, conseguimos gerir melhor os recursos naturais, isso é sustentável”, resume Travain, parceiro de pesquisas.
Fertirrigação e biofábrica
Na aterrissagem em Cacoal já se avistam os cafezais da Selva Café. A fazenda, que abriga parque aquático, hotel e indústria de laticínios, reserva 220 hectares ao café. Nas Matas de Rondônia, a irrigação deixou de ser auxiliar e virou base da produção: 97,2% das propriedades da região são irrigadas, segundo Alves.

Para preservar a água, Travain adotou a nutrirrigação, que injeta adubo de forma automatizada e em doses programadas conforme a necessidade da planta. O sistema tem sensores de umidade do solo, qualidade da água e equilíbrio nutricional da planta, com monitoramento em tempo real. “Com ele, fazemos 120 adubações anuais”, explica o cafeicultor, sócio de três irmãos e um amigo e hoje referência em tecnologia na região. Entre as vantagens estão uso eficiente de água e fertilizantes, melhor aproveitamento das raízes superficiais, corte de custos e ganho em produtividade: economia de 30% em adubo, até 50% em água e previsão de uma média de 140 sacas por hectare em 2025, contra 104 no ano anterior, quando uma das lavouras ainda não estava 100% sob o sistema.
As práticas se somam à instalação de tanques para captação de chuva, uma biofábrica e uma usina de compostagem. Na biofábrica, são produzidos os fungos trichoderma – aplicado por irrigação ou drone contra fusariose – e beauveria, alternativa biológica a defensivos químicos. Produzidos na própria fazenda, chegam ao campo no auge da reprodução, o que garante mais eficiência. Já na usina, resíduos como rúmen, pó de serra, cama de frango e palha de café se transformam em compostos para recuperar solos degradados: hoje, 100% da área da Selva Café está restaurada.
A cafeicultura é considerada estratégica para recuperar áreas degradadas por pastagens nas Matas de Rondônia, que somam 1,88 milhão de hectares. Segundo Alves, considerando a média de sacas produzida por hectare no estado, se apenas 25% dessa área fosse convertida em lavouras, a produção passaria de 25 milhões de sacas – volume próximo ao do Vietnã, líder mundial na produção de canéforas.
Recomposição agroflorestal
Quando os pais cogitaram vender a propriedade em Novo Horizonte D’Oeste, Geanderson Gambarte, então com 23 anos, largou o emprego em Goiás e voltou para casa. Em poucos anos, a área de café saltou de 3 para 9 hectares e a produtividade mais que dobrou, de 50 para 125 sacas por hectare. A virada veio com manejo sustentável e tecnologia. “Em 2021, Poliana Perrut nos apresentou os cafés especiais. Nem sabíamos o que era isso, mas a produção estava doente”, lembra. A consultora, que também é cafeicultora, viveirista e uma das lideranças em café da região, ajudou a equilibrar a lavoura. “O uso consciente dos produtos e equipamentos é fundamental”, ensina Poliana. Hoje, a família produz microlotes premiados que já alcançaram 92 pontos.
O drone substituiu o atomizador costal e reduziu tempo, mão de obra e aplicação de químicos. “Antes gastava sete dias para pulverizar, hoje em quatro horas o drone faz o mesmo serviço”, diz Gambarte. Com tensiômetro, o consumo de água e energia caiu pela metade: na seca, cada talhão passou de duas horas para uma hora de irrigação semanal. Toda a água da fertirrigação vem de um reservatório próprio.
A transformação inclui recomposição florestal, plantio de ipês entre os pés de café – criando microclima para o cafezal –, recuperação de nascentes, pastagens e criação de abelhas para polinização. “As árvores ocupam o espaçamento de apenas uma planta de café. Os cafés ficam mais à vontade, o solo perde menos umidade, e ainda há ganho paisagístico”, avalia o cafeicultor. O sítio agora se chama Recanto dos Ipês. Ao lado das placas solares que abastecem a propriedade, Geanderson ergue um armazém para processar a próxima safra e planeja reformar a casa dos pais, onde tudo começou.
Qualidade, natureza e família
Embora a área de café em Rondônia seja pequena, sua relevância econômica e social é enorme. Terceira maior economia do estado, a cultura deve gerar neste ano um VBP de R$ 5 bilhões. “O café garante renda e qualidade de vida em pequenas áreas. E, quando há qualidade de vida, o jovem permanece no campo”, afirma o pesquisador Enrique Alves.
Um estudo socioeconômico do CarbCafé mostra que a idade média do cafeicultor caiu de 53 para 47 anos em 15 anos, em um cenário em que 95,5% das propriedades são classificadas como familiares.
A história da família Da Luz, em Cacoal, é um retrato dessa renovação. Desde 1986, quando deixou o Espírito Santo, João da Luz investiu no conilon no sítio Coração de Mãe. Nos anos 2000, adotou plantas mais produtivas e, em 2019, passou a apostar nos robustas amazônicos e em cafés diferenciados, como os fermentados.
A fermentação, adotada recentemente, ampliou a complexidade e a diversidade sensorial dos robustas – hoje, mais da metade dos lotes enviados a concursos passam pelo processo. “Em 2016 começamos os testes e vimos que a fermentação podia variar de 10 a 20 dias, mais do que no conilon e no arábica”, explica Alves. Em 2019, já havia 10% de cafés fermentados em Rondônia. “O robusta amazônico fermentado é uma identidade do nosso café”, afirma.
Os concursos impulsionaram a virada. Em 2022, Da Luz venceu o Concafé (Concurso de Qualidade e Sustentabilidade do Café de Rondônia) e ficou em 2º lugar no Coffee of the Year, durante a Semana Internacional do Café. Em 2024, alcançou o 1o lugar nacional em torra no concurso da CNA. Os prêmios, que incluíram um trator e um torrador, e a chegada de equipamentos como secador de fogo indireto (via Caferon), tensiômetro e energia solar, elevaram a produção: hoje, 30% dos cafés da família são especiais e seguem para capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Velho e Brasília. “O café especial levou a gente a um lugar que nunca imaginamos”, reflete o cafeicultor.
Muito antes de a palavra sustentabilidade ganhar força, Da Luz já reflorestava nascentes. “Quando chegamos, não tinha água”, lembra ele, que a fornece aos vizinhos. A propriedade também abriga um meliponário, hoje cuidado pela filha e pelo genro, que voltaram à fazenda após o sucesso do negócio. “Cada passo é para unir qualidade, natureza e família”, diz ele, que mira 120 sacas por hectare, contra a média atual de 90 a 100. “Produtividade é fazer as coisas certas desde o começo. Meu pai sempre dizia: ‘cuide da terra mais do que de você, porque tudo depende dela’.”
Café na floresta
Para os Paiter Suruí, plantar café é também preservar a floresta – nas reservas indígenas de Matas de Rondônia, as áreas de floresta nativa primária alcançam 1,2 milhão de hectares.
Em 2024, na 6ª edição do concurso Tribos – projeto da 3corações em parceria com Embrapa e instituições como a Funai –, um microlote de Rafael Mopimop Suruí recebeu a inédita nota média de 95 pontos. Cultivado na aldeia Linha 9, na Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal, o café do cacique já havia figurado entre os melhores em edições anteriores. “Acho que é porque a gente não trabalha com químico”, diz ele, que faz colheita e seleção manual, além de fermentar os frutos, técnica introduzida pela 3corações.

Hoje, todas as 28 famílias da aldeia cultivam café. Há cinco anos, a aldeia de Rafael criou uma cooperativa. Os Paiter Suruí têm três delas, que vendem 100% do café para a 3corações. Desde o lançamento em 2019, o Projeto Tribos comprou 520 mil quilos de café – uma média de 1,5 mil sacas por ano. “O café mudou nossa vida. Tem jovem que queria emprego na cidade e agora quer trabalhar com café especial na aldeia, para ser autônomo”, comemora Rafael, cujo sonho, agora, é poder conduzir todo o processo dos seus cafés.
Com o bloco na rua
Ganhar concursos é vitrine para qualquer produtor. No caso dos robustas amazônicos, eles integram a estratégia da Caferon para projetar a denominação de origem. “Quando o problema era ambiental, comprovamos que não havia desmatamento. Quando foi qualidade, mostramos com provadores que nossos cafés têm qualidade. Cada dificuldade a gente transformou em ativo”, resume Travain.
Em 2016, o governo do estado, em parceria com diversas instituições, criou o Concafé, primeiro concurso estadual de qualidade e sustentabilidade. No mesmo ano, a Caferon levou Rondônia à Semana Internacional do Café (SIC). “Levamos um café amazônico numa feira praticamente de arábicas, e as pessoas iam ao nosso estande com a expectativa de beber um café ruim”, lembra Alves. Desde então, o concurso já atraiu degustadores de diversos países e gerou negócios internacionais.
Outra frente de promoção foi levar cafés a embaixadas brasileiras, como a de Londres, em 2024. “Foi um evento disruptivo. Mostramos que o café da Amazônia é sustentável e de qualidade, e isso abriu caminho para novos negócios”, afirma o presidente da Caferon. Logo depois, uma rede de cafeterias em Londres destacou aqueles cafés em sua linha de produtos.
A estratégia inclui ainda resolver gargalos logísticos. “Somos os primeiros a exportar café pela Amazônia Legal. Agora, estamos inaugurando a rota do porto em Lima”, destaca, referindo-se à Rodovia Interoceânica, corredor terrestre que leva o café de Rondônia ao Peru, e ao porto de Chancay, que encurta o transporte marítimo até a Ásia.
Hoje, os café das Matas de Rondônia são exportados para países como China, EUA, Rússia e Coreia do Sul. Nos últimos três anos, a exportação pulou de mil para mais de 500 mil sacas – mais de 20% de todo o café produzido no estado.
Na semana de apuração desta reportagem, onze torrefadores russos visitaram a região. A organizadora do grupo, Valentina Moksunova, da Hummingbird Coffee, decidiu apostar nos canéforas para fugir do clichê do café brasileiro associado apenas ao arábica. Em 2024, importou a primeira leva de robustas amazônicos. “Todo mundo compra do Sul de Minas, mas quis oferecer algo realmente único e novo. E, na Rússia, onde os consumidores comuns preferem cafés com menos acidez, os robustas amazônicos são a resposta: tem um sabor puro, que pode ser aceito por um público maior”, explica.
Turismo sustentável
Desde que venceu o Concafé em 2017, Ronaldo Bento, do Sítio Rio Limão, em Cacoal, passou a frequentar feiras e eventos em busca de mais qualidade e sustentabilidade para seus cafés e para Rondônia. “O estado era conhecido por ter o pior café. Eu disse: não, temos que mudar isso”, conta. No ano seguinte, levou os filhos: “São eles que vão seguir esse caminho novo”.
Em 12 hectares, cinco famílias do clã Bento dividem as tarefas da produção. Referência em qualidade e turismo rural sustentável, a propriedade recebe até 2,5 mil visitantes por mês, produz 800 sacas por safra e mantém torrefação própria, vendendo direto ao consumidor em cidades como Belém, Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro. “Nossa produção ainda é pouca para atender a esse mercado, que é muito grande”, avalia.

Parceiro da Embrapa em pesquisas, Ronaldo Bento adota o pacote tecnológico completo: fertirrigação guiada por análise de solo e folha, secadores de fogo indireto, fermentações controladas, energia solar e bioinsumos. O resultado é colheita com até 90% de frutos maduros. Áreas de pastagem e nascentes também foram recuperadas com o plantio de quase 300 árvores nativas, como castanheiras, ipês e açaí. “Hoje o tanque de água está reflorestado e as árvores já estão formadas”, diz.
Com a demanda crescente, a família passou a beneficiar e torrar café de outros produtores e prepara a expansão do negócio. “Das 50 sacas torradas da primeira safra, chegamos a mais de mil. A indústria ficou pequena, precisamos crescer para atender mais parceiros também”, comemora.
Proteção da fronteira e da floresta
Outros estados da Amazônia já olham para Rondônia como modelo. O Acre, com mil cafeicultores e mais de 80% da floresta preservada, vem investindo na transformação de sua cafeicultura, seguido por Roraima e Amazonas.
Para Enrique Alves, a história que esses cafés levam à COP30 traduz o princípio básico da sustentabilidade: “a necessidade das gerações atuais não pode se sobrepor à das gerações que virão”. Ele lembra que, se no passado a colonização tinha como foco proteger a fronteira, hoje o desafio é outro: proteger a floresta. Com a sustentabilidade no DNA da DO Matas de Rondônia e 10% de cafeicultores do estado trabalhando a qualidade dos cafés, Alves garante: “Não há produtor de robustas finos que não esteja comprometido a transformar o discurso da produção sustentável em boas práticas”.
Alves e Travain também torcem para apresentar novos resultados no evento, como o estudo do CarbCafé que compara o estoque de carbono no solo de florestas, pastagens e cafezais. “Hoje temos um arcabouço científico que ajuda a cafeicultura a evoluir”, diz Alves. A próxima etapa do projeto testa 64 clones, em parceria com os agricultores, para obter cultivares mais produtivas, adaptadas e com melhor perfil sensorial. “Estamos enviando grãos torrados para a Nigéria como exemplo do que pode ser feito com o robusta no lugar mais próximo de seu centro de origem”, acrescenta.