Rio Taquari é um dos rios mais assoreados do país, deixando evidente a falta de cuidado ambiental
Engenheiro Agrônomo pela Universidade Federal de Viçosa (MG) e doutor em ciências ambientais pela Universidade de Wageningen, na Holanda, Renato Roscoe está, desde 2021, à frente de uma missão decisiva para o futuro do Pantanal: a recuperação da bacia do Rio Taquari, um dos mais importantes afluentes do Rio Paraguai. Diretor-executivo do Instituto Taquari Vivo, ele contou à Globo Rural como está esse trabalho desde a criação da entidade, há três anos.
A iniciativa para restauração ambiental e produtiva do rio, além de promoção do desenvolvimento sustentável do Pantanal, é formada por ambientalistas, pesquisadores, empresários e outros agentes da sociedade civil. Com 26.400 km² de extensão, a região vive os efeitos da degradação causada pela ocupação e exploração desordenada desde o fim da década de 1970.
Hoje, o Taquari é considerado um dos rios mais assoreados do país, deixando evidente como a falta de cuidado ambiental na atividade agropecuária pode se voltar contra o próprio setor.
Globo Rural: Nesses três anos de existência do instituto, quanto já foi possível avançar na recuperação da bacia do Taquari?
Renato Roscoe: Muito pouco. O que nós temos feito são trabalhos-piloto de conscientização. Eu acho que um dos maiores ganhos que nós tivemos até hoje foi o de mobilização de atores na região. Com isso, já recuperamos 5.000 hectares de área dentro da bacia. Claro que isso é importante, mas ainda é muito pequeno diante da necessidade daquela região. O que precisa é uma transformação no processo de desenvolvimento. Termos conseguido com que o Estado se movimente nessa direção, capitalizar recursos para a região, foi um resultado muito importante nesses dois anos. Mas a situação não mudou, ainda está muito parecida com o que tínhamos no começo, porém com uma conscientização maior dos atores locais e das autoridades sobre a necessidade de restauração dessas áreas. Estamos fazendo nosso trabalho de formiguinha, restaurando áreas que servem de modelo para outros produtores. Acreditamos que essa evolução será como uma curva de inovação da qual estamos apenas no início, conversando com produtores pioneiros que adotam a tecnologia mais rápido. Daqui a pouco esperamos que ela pegue tração, crescendo a quantidade de produtores que adotam as tecnologias de restauração. Isso é uma questão geracional. A transformação territorial que estamos propondo não é algo para cinco ou dez anos, é para 30 anos, visa mudar realmente as formas de explorar áreas no entorno do Pantanal.
GR: Nesse sentido, a pecuária é estratégica para essa recuperação. Mas, na prática, o setor ainda é visto como um inimigo do meio ambiente. Por que?
Roscoe: A pecuária pode ser uma vilã ou uma aliada da preservação ambiental. Ela é uma vilã quando é utilizada de forma predatória, extrativista e sem um manejo adequado. Esse tipo de pecuária gera a degradação e leva, infelizmente, esse carimbo de ser a degradadora do meio ambiente. Mas a pecuária moderna é totalmente diferente. Com pastagens melhoradas, com o manejo adequado, com divisão de pastos e mantendo a quantidade de animais por hectare sob controle, para não degradar a pastagem, ela se torna um grande aliado na proteção do meio ambiente.
GR: Vocês trabalham com metas de recuperação?
Roscoe: A nossa perspectiva é mudar essa cultura, mas não temos um prazo estabelecido. Para recuperar toda a bacia, nós precisaríamos de recursos na casa de bilhões de reais e nós sabemos que isso não vai acontecer da noite para o dia. A nossa ambição é iniciar essa onda de inovação para que ela vá atraindo cada vez mais produtores, pesquisadores, técnicos, dirigentes, todo tipo de gente nessa direção. Nós queremos ser um fio condutor desses esforços no Taquari ad eternum. Enquanto houver condições de mobilizar recursos para o Alto Taquari e para o Alto Paraguai como um todo para proteção do Pantanal, vamos continuar trabalhando. É uma corrida de bastão, é geracional. Agora, nós que estamos aqui no Taquari estamos carregando o bastão, mas daqui a pouco vamos ter que passar para outros tocarem para frente.
GR: Existe alguma perspectiva de a baciado Taquari voltar a ser como era antes?
Roscoe: Nossa recuperação não vislumbra isso porque, na realidade, o rio mudou de curso. Ele foi tão assoreado que estourou uma das suas laterais já dentro da bacia pantaneira. E nós trabalhamos na região do planalto, mas temos alguns trabalhos também na planície pantaneira. E o rio hoje tem170 quilômetros de área seca e, do outro lado, foram inundados permanentemente 650.000 hectares. É uma coisa realmente expressiva.
GR: Esses 650.000 hectares são de áreas privadas?
Roscoe: Sim, são fazendas que foram totalmente inutilizadas. Fazendas de 10.000 hectares, 15.000 hectares que foram totalmente abandonadas. Não tem o que fazer, é uma lâmina d’água.
GR: Ou seja, é um caso em que o impacto ambiental da pecuária inviabilizou a própria atividade…
Roscoe: Exatamente. Existe um impacto ambiental e socioeconômico muito forte quando o meio ambiente é degradado, e é isso que temos trabalhado com os produtores. Acho que há uma consciência cada vez maior de que, quando o meio ambiente é degradado, a capacidade de produção também é afetada. Não tem atividade econômica que seja sustentável em solo degradado. Não vai ter produção, não vai ter receita e não vai ter rentabilidade. Não existe atividade produtiva que se sustente se não preservarmos a água. Então, para mim, não há uma distinção dos interesses entre meio ambiente e produção de alimentos, eles têm que estar associados, porque um depende do outro.
GR: Se o impacto na atividade é tão grande, por que há essa resistência em reconhecer a necessidade de mudar?
Roscoe: Eu diria que não é uma resistência, sabe? Porque quando você consegue conversar com ele (produtor), ele acaba entendendo. É muito mais falta de acesso. Ele às vezes não tem acesso a essa conversa.
Não existe atividade produtiva que se sustente se não preservarmos a água
GR: E qual é o nível de engajamento dos produtores hoje?
Roscoe: Temos quatro situações principais: o produtor que não percebe que a atividade dele pode estar causando impacto e que ele tem como melhorar; o que já está sensibilizado e está preocupado com aquilo, mas não sabe o que fazer; aquele que já percebeu o problema, sabe o que tem que fazer, mas não tem os recursos para tal; e, por fim, há uma dificuldade grande de os produtores agirem coletivamente. Hoje, o maior número de produtores está no grupo daqueles que ainda não perceberam o problema. Estamos fazendo um trabalho de formiguinha, trazendo pouco a pouco os produtores para dentro do programa.
GR: A seca histórica enfrentada este ano ajuda nesse trabalho de conscientização?
Roscoe: O produtor rural já convive com a seca há muito tempo. Não coma seca agravada como está agora, mas com um período seco. Todos os anos isso acontece. Mas esse agravamento piora muito a situação do produtor, ele fica mais descapitalizado: o gado ganha menos peso, a rentabilidade dele é apertada e dificulta mais ainda que ele tenha capacidade de reação.
GR: Então, o efeito é contrário? A seca desestimula?
Roscoe: Dificulta a vida do produtor. E isso torna cada vez mais urgente que ele realmente faça uma reestruturação da sua propriedade. Nós já estamos vivendo com 1,5ºC de aumento de temperatura, então nós já temos que pensarem adaptação, e não só em mitigação, das mudanças climáticas. Por isso, torna-se cada vez mais urgente que esse produtor, principalmente o pecuarista, tenha capacidade de investir, mudar seu sistema de produção, para que ele esteja preparado para lidar com esse clima que é cada vez mais hostil para ele. Temos o programa nacional de recuperação de pastagens, lançado pelo governo federal, e, aqui em Mato Grosso do Sul, o Prosolo, voltado para recuperação de pastagens exatamente como objetivo de estimular cada vez mais a recuperação dessas áreas.
GR: E nos locais que estão em recuperação neste momento, quais impactos vocês sentem com a seca?
Roscoe: A estação seca prolongada dificulta muito, por exemplo, o plantio de mudas para restaurar uma área de preservação. Muitas acabam morrendo. O mesmo ocorre na renovação de pastagens, quando é preciso aplicar calcário e, em alguns casos, revolver o solo. Se não tiver chuva, isso não acontece. Então, dificulta o trabalho no dia a dia. O período do ano que podemos usar para fazer a recuperação acaba ficando cada vez mais estreito.
GR: Isso aumenta o custo da recuperação de alguma forma?
Roscoe: Não tem impacto financeiro direto, mas, quando fazemos o trabalho de recuperação e não tem chuva suficiente para ela se instalar, muitas vezes temos que fazer de novo. Aí, sim, tem um impacto financeiro, porque reduz essa capacidade de as plantas se instalarem. Quanto mais seco, mais difícil que isso aconteça.
GR: Existem outras bacias ameaçadas na região? Esse cenário pode se repetir em outras áreas?
Roscoe: É difícil, porque a bacia do Taquari é muito específica, com uma área muito arenosa. Mas as outras bacias têm outros riscos de degradação também. Não são tão severos quanto a do Taquari, onde o processo é mais complicado, tem mais areia, é mais fácil de erodir. Mas nós já temos um trabalho na bacia do Rio Miranda, na região de Bonito, a pedido do governo do Estado. Os problemas são diferentes, mas acaba sendo a mesma coisa: técnicas de recuperação de solo, de manejo adequado de solo, terraceamentos, estradas bem manejadas. Inclusive, o objetivo lá é reduzir a turvação dos rios e todo esse impacto que pode haver. Ou seja, é, sim, possível que haja degradação em outras bacias, elas possuem sensibilidade, mas não no grau e na intensidade que aconteceu com o Taquari, por causa das suas condições específicas.
GR: Essa maior vulnerabilidade do Taquari, com impactos tão notórios, facilita o trabalho de convencimento do produtor?
Roscoe: Sem dúvida. Quando começamos a conversar com os produtores, eles têm o sentimento de que precisa mudar. Tem casos de produtores que tiveram que mudar porque a casa caiu dentro da voçoroca. Então, é um negócio muito visível para eles, o que torna relativamente simples para nós propormos que alguma coisa tem que ser feita. Já quando os processos são mais difusos, como nas outras bacias, não é uma coisa tão direta, e fica um pouco mais difícil. Agora, o processo erosivo continua acontecendo e ameaçando toda essa bacia. Tem erosões do tamanho de um edifício de dez andares, as chamadas voçorocas. Há um processo de degradação em curso que precisa ser estancado.