Plantio de trigo retorna ao Cerrado de Mato Grosso do Sul

Pesquisas científicas, avanço das cooperativas e busca por diversificação têm feito o cereal ressurgir nas lavouras de MS

Em 1972, o produtor rural Irineu Schwambach trocou o Paraná por Mato Grosso do Sul e levou com ele a família e sua paixão pelo trigo. Quinze anos depois, os riscos da cultura, os preços baixos e a dificuldade de comercialização o fizeram desistir de plantar o cereal em sua fazenda, localizada em Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai.

“Na época da mudança, o trigo tinha muitos produtores na região. Era a cultura que pagava a conta”, diz o técnico agrícola Marco Antonio Schwambach, filho de Irineu, que nasceu em Ponta Porã um ano depois da migração da família e hoje trabalha com o pai na propriedade, de 1.300 hectares. “Mas, no fim da década de 1980, ela ficou economicamente inviável.”

Eles cultivam 1.050 hectares de soja no verão e, no inverno, dividem a área entre várias culturas. Há cinco anos, o trigo reapareceu nas lavouras dos Schwambach. A chegada de cooperativas à região de Ponta Porã e a difusão de cultivares do cereal específicas para o Estado fizeram Irineu voltar a plantar trigo de sequeiro.

Também pesaram na decisão, relata Marco Antonio, os fatos de, na comparação com o milho, o trigo contar hoje com uma janela de plantio mais favorável; a cultura ser mais resistente à seca; e ser benéfica para o solo que, meses depois da colheita, receberá a soja.

Nos anos 1970, o trigo era uma cultura importante no Estado. No auge, ele chegou a ocupar 432.000 hectares em Mato Grosso do Sul, mas o cultivo desmoronou a partir dos anos 1990 – e, em apenas dez anos, o cereal perdeu 400.000 hectares. Agora, o trigo sul-matogrossense passa por uma “ressurreição”.

Nos últimos anos, pesquisas da Embrapa fizeram surgir mais de 40 cultivares do cereal recomendadas para o plantio no Estado, as cooperativas que se instalaram em Mato Grosso do Sul passaram a concorrer com os moinhos nas compras da colheita e os produtores começaram a identificar vantagens no uso do trigo na rotação de culturas.

O trigo de sequeiro transformou-se em alternativa de renda também na Fazenda Jaguarundi, outra das propriedades de Ponta Porã que decidiram apostar na cultura. Rodrigo do Amaral, gerente da Jaguarundi, conta que o carro-chefe do negócio é a soja, que ocupa 2.100 hectares, mas, há cinco anos, o trigo passou a ser uma opção na safra de inverno, dividindo área com o milho.

No ano passado, o dono da fazenda, Eric Jean Roorda – que, além de cultivar grãos e atuar na pecuária em Mato Grosso do Sul, tem propriedades no Paraná, em São Paulo e no Maranhão –, plantou 1.000 hectares de trigo e 1.000 de milho. Nesta safra, em virtude dos prejuízos que teve com ataques de javalis aos silos-bolsa, não houve plantio de milho na Jaguarundi, relata Amaral. O trigo ocupou 1.890 hectares, deixando uma pequena área para feijão e milheto.

O pesquisador Claudio Lazzarotto, da Embrapa: “O trigo tem potencial de ocupar 200.000 hectares no Estado — Foto: Ruy Baron

As experiências de Roorda e da família Schwambach ilustram o quadro de ressurgimento do trigo nas lavouras sul-mato-grossenses. “Acredito que o trigo tem potencial para ocupar, em breve, 200.000 hectares no Estado”, afirma Claudio Lazzarotto, pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste. “Se ele pegar só 1% da área de milho nos dez municípios que, nos quesitos de relevo, clima e umidade, têm mais aptidão para o trigo, já se chega a mais de 125.000 hectares. E se ocupar 1% da soja, a área da cultura pode passar de 210.000 hectares”.

A Embrapa quer estimular o uso do trigo no sistema de produção para sustentar a dobradinha soja/milho, que já enfrenta problemas fitossanitários e o ataque de pragas. “O trigo pode servir até como herbicida”, diz o cientista.

Nas áreas experimentais da unidade da Embrapa em Dourados, a cerca de 120 quilômetros de Ponta Porã, o pesquisador plantou uma série de cultivares que a estatal desenvolveu. Entraram na lista de plantio, entre outras, a BRS Atobá – que, por ter alto rendimento e qualidade industrial, é a que os produtores mais cultivam no Estado –; a Gralha Azul, que produz um trigo melhorador (usado para corrigir as variações da farinha de trigo que entra na linha de produção de pães emassas, por exemplo) de ciclo médio; a Sanhaço, recomendada para regiões mais frias; e a Coleiro, que ganhou o apelido de “Neymar do trigo”, por causa de seu alto rendimento – e que, além disso, tem boa sanidade e tolerância à brusone, doença que mais causa perdas à cultura. Os cientistas também plantaram variedades desenvolvidas pela Fundação Meridional e por empresas privadas, como a OR Sementes e a Biotrigo.

Operação do Moinho Talita, um dos dois que estão em operação na região de Dourados: investimentos de empresas do segmento e também de cooperativas deram aos produtores mais opções de comercialização do cereal no Estad — Foto: Ruy Baron

Nos experimentos de campo, a Embrapa trabalha em parceria com a Cooperalfa. Há três anos, a cooperativa sediada em Chapecó (SC), que chegou a Mato Grosso do Sul em 2014, deu início a um projeto de segregação de cultivares de trigo para a produção de farinhas especiais. No programa, que está disponível mesmo para agricultores que não integram a cooperativa, ela asse-gura ao produtor a compra da colheita e o pagamento de um preço mínimo pelo cereal.

O plantio de trigo beneficia o sistema produtivo

— Luan Pivatto, engenheiro agrônomo da Cooperalfa

“Nesse projeto de farinhas especiais, temos que ter total rastreabilidade do trigo. Isso passa por compra e tratamento das sementes, manejo fitossanitário, colheita e beneficiamento”, afirma Luan Pivatto, engenheiro agrônomo da Cooperalfa.

Ainda que o trigo seja uma cultura muito sensível a mudanças das con-dições climáticas, o que pode fazer com que a colheita não renda matéria-prima para a fabricação de farinhas especiais, a cooperativa promete fazer uma oferta de compra pelo cereal. “Para o produtor, nada é pior do que plantar, cuidar, fazer todo o manejo, mas pegar dez dias seguidos de chuva antes da colheita, o que afeta a qualidade industrial do grão”, diz Pivatto. “Tanto que muitos moinhos nem recebem esse trigo.”

Segundo o agrônomo, a cooperativa até conseguiria trigo mais barato se importasse da Argentina, mas a estratégia da Cooperalfa passa pelo fortalecimento da cadeia de produção local – ainda que, no momento, a rentabilidade seja menor do que seria com a importação de matéria-prima. “Temos certeza de que o plantio de trigo oferece benefícios ao sistema produtivo. Quem planta trigo colhe mais soja”, argumenta. Sem citar números, Pivatto afirma que a área de trigo de captação da Cooperalfa triplicou entre 2023 e 2024.

No projeto de farinhas especiais, os produtores receberam R$ 79 pela saca no ano passado, quando o preço do trigo comercial em Dourados estava em R$ 65. A cooperativa tem cinco unidades em Mato Grosso do Sul, sendo três lojas agropecuárias com recebimento de grãos, uma fábrica de ração e uma unidade produtora de leitões, com 5.000 matrizes. O trigo que a Cooperalfa capta no Estado, entretanto, vai 100% para a indústria que ela tem em Chapecó.

Na região de Dourados, há dois moinhos em atividade. O maior e mais antigo pertence à empresa Dallas Alimentos. O complexo industrial, com 60.000 metros quadrados de área construída, abriga 17 silos metálicos e dois armazéns graneleiros, que têm capacidade de estoque de até 103.000 toneladas de grãos por ano.

O moinho pode beneficiar até 450 toneladas de trigo por dia – a maior parte da matéria-prima que passa pela estrutura é importada. O complexo tem ainda um pastifício para fabricação de espaguetes, massas cortadas, lasanha, talharim e massa ninho, além de duas linhas de produção de biscoitos recheados e laminados.

O trigo virou opção de cultivo de inverno na propriedade

— Rodrigo do Amaral, gerente da Fazenda Jaguarundi, de Ponta Porã

O Moinho Talita, o mais novo, foi inaugurado em 2021, depois que um incêndio destruiu a indústria-sede, que ficava em Santo Antônio do Sudoeste, no Paraná. Ele tem capacidade de moagem de 90 toneladas por dia e compra de produtores locais praticamente todo o trigo que consome – o foco do Talita é o trigo para panificação.

A família Priamo, dona do moinho, já anunciou que investirá R$ 40 milhões nos próximos anos para erguer uma estrutura capaz de armazenar 30.000 toneladas do cereal. Atualmente, o moinho está em uma área de 30.000 metros quadrados e passa por obras que vão dobrar sua capacidade de armazenamento, que chegará a 2.000 toneladas.

Há três anos, a Jotabasso, empresa de sementes de soja fundada há meio século, também entrou no mercado do trigo de Mato Grosso do Sul ao dar início ao cultivo de sementes do cereal nas unidades que ela temem Ponta Porã e Serrinha. Com credenciamento do Ministério da Agricultura para produção de sementes de qualidade, a Jotabasso beneficiou e comercializou 500toneladas de sementes no primeiro ano e, no segundo,o volume subiu para 690 toneladas.

Plantando 18.000 hectares em Serrinha e 17.500 hectares em Ponta Porã, a companhia é a maior produtora do cereal no Estado. Na seleção da empresa, que tem capacidade de beneficiar 10.000 toneladas, o trigo que não tem vigor para 90% de germinação – e que, por isso, não passa na análise de qualidade para semente – vira grão.

Neste ano, devido às condições climáticas adversas, que prejudicaram o trigo, a Jotabasso deve reduzir a venda de sementes do cereal. A estiagem deste ano tem sido, aliás, um percalço na trajetória de ressurgimento do trigo em Mato Grosso do Sul. Na safra 2022, a produtividade média da cultura no Estado foi de 65 sacas por hectare. A média caiu para 48 sacas em 2023 e, nesta safra, deve despencar por causa da falta de chuvas.

“E, além da seca, tivemos temperaturas muito altas”, relata o pesquisador Claudio Lazzarotto, da Embrapa Agropecuária Oeste. “O trigo não vive só de água, ele precisa também do frio.”

É verdade que o trigo costuma ser menos produtivo que o milho, mas seu custo de produção é mais baixo do que o do grão que concorre com ele por área, desde que o produtor colha pelo menos 35 sacas de trigo por hectare. Para os Schwambach, não foi o caso neste ano: a estiagem severa matou a maior parte do trigo que a família semeou em Ponta Porã.

“Meu pai diz que, nos 50 anos que vive em Mato Grosso do Sul, nunca viu uma seca igual a essa. Até nossas lagoas secaram”, relata o produtor Marco Antonio Schwambach. “Estamos colhendo para ver se dá para salvar algo para semente.” Se não der, o cereal vai para ração.

Rodrigo do Amaral, gerente da Fazenda Jaguarundi, de Ponta Porã, conta que a estiagem fez do desempenho do trigo em 2024 o pior que a propriedade teve desde que voltou a apostar na cultura, há cinco anos.

“Só tivemos duas chuvas pequenas, em abril. No ano passado, colhemos entre 48 e 57 sacas por hectare, mas, agora, se colhermos 15 sacas, já será um alívio”, diz Amaral, que entrega o grão na cerealista da Coamo, cooperativa paranaense que se instalou na região em 2010.

Mas, contratempos à parte, a fazenda está convicta de que o trigo tem sido uma boa alternativa de diversificação e geração de renda. “A opção foi certa”, avalia o gerente. “Mas demos azar com a seca.”

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